Recomeço pela limpeza que salva vidas

 Recomeço pela limpeza que salva vidas

GzT20964.JPG Siemaco, empresa Centro, contrata trabalhadores em situação de rua, para limpeza, no hospital das clinicas

Desagregação familiar, abandono, abuso, consumo de álcool e drogas, desemprego, opção sexual, violência doméstica, transtornos psicológicos, espírito aventureiro, intolerância. São muitos os motivos que levam uma pessoa a buscar a rua como lar, onde ela sobrevive em condições adversas como fome, frio, violência e principalmente descaso. Na capital paulista, cidadãos sem direito, eles estão nas calçadas, embaixo das pontes.

Felizmente, muitos entre eles estão tendo a oportunidade de resgatar a dignidade ao aderir ao Projeto Trabalho Novo, da prefeitura municipal, realizado em parceria com a Ong Rede Cidadã, empresas e entidades como o Siemaco.Nas categorias representadas pelo sindicato, centenas de moradores que viviam situação de rua e foram acolhidos em albergues estão redescobrindo a vida através do trabalho formal e sendo reconhecidos pelos empenho e qualidade do serviço, tanto na Limpeza Urbana quanto no Asseio e Conservação.

Destaques no maior hospital do Brasil

Num ambiente hospitalar, a limpeza é tão importante quanto o cuidado e a atenção médica. No complexo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a empresa Centro está quebrando paradigmas, ajudando a reescrever histórias e, literalmente, salvar vivas.

Na quinta-feira Santa (13), coincidentemente quando a crença cristã consagra os Santos Óleos e repete a Cerimônia do Lava-Pés, os diretores do Siemaco, Márcia Adão e Fábio Cruz, acompanhados pelo assessor sindical Valdir Laino, foram conhecer de perto o trabalho realizado por ex-cidadãos em situação de rua que se tornaram trabalhadores com carteira assinada.  Aproximadamente 100 pessoas foram contratadas como Auxiliares de Limpeza do Instituto Central, Icesp (Câncer) e Incor (Coração), hospitais reconhecidos internacionalmente como excelência no segmento da saúde.  O primeiro grupo iniciou as atividades no dia três de fevereiro e a meta é atingir 400 profissionais.

A enfermeira Lovane Bergonsi, coordenadora operacional da Centro, e as colegas Antonia, Marcela e Bárbara aceitaram o desafio de orientar os novos contratados e garantem que estão se surpreendendo favoravelmente com os resultados. “É um projeto audacioso, totalmente alinhado com o hospital”, salientou explicando que o trabalho tem de ser impecável, pois interfere não apenas no ambiente, mas na saúde dos pacientes e equipes envolvidas na dinâmica hospitalar. “Temos aqui alguns heróis!”.

Limpos de corpo e alma

Referência para os serviços de resgate da cidade, o Pronto Socorro do HC recebe os feridos mais graves, vítimas de acidentes e violência urbana. Nesse ambiente, o ex-açougueiro José Mário da Silva destaca-se ao zelar por 36 leitos. Depois de sobreviver a quase uma década em situação de rua ele passou a viver num abrigo do bairro do Brás onde conheceu o Projeto Trabalho Novo. Contratado pela Centro há três meses, o pai de dois filhos pequenos já é capaz de fazer planos.

“Agora eu sou uma pessoa”, afirmou Jamile Batista de Moraes.  Carioca, ela trocou o Rio de Janeiro por São Paulo em busca de uma vida melhor, mas apenas há um mês começou ver a luz no final do túnel. “Na rua somos invisíveis e quem nos vê sente nojo”, desabafou contando que a opção sexual aguçou a discriminação e segregação, mesmo nos abrigos municipais.

Ela, que tinha medo de sangue, há um mês tornou-se uma auxiliar de limpeza exemplar ao cuidar com afinco da limpeza na Unidade de Terapia Intensiva do Incor. “Eu quero estudar, fazer faculdade de advocacia para trabalhar nas causas LGBT”, confidenciou.

A vida de Manuel Liberato Santos, de 60 anos, deu muitas voltas. “A gente cai por diferentes tipos de circunstâncias e depois levanta e cai repetidamente”, contou o ex-pedreiro, segurança e gari. ”É magnífico contar com uma carteira assinada novamente, trabalhando no segmento da limpeza.”

Marco Antonio Antunes, 59, trabalhou durante 25 anos na Limpeza Urbana e conhece como poucos a história do segmento. Ele trabalhou na Cavo, na Vega mas foi desligado quando a Inova ganhou o contrato e adequou o quadro de colaboradores. “Eu perdi tudo, inclusive a família”. Consciente de que sua realidade foi fruto de escolhas, mais uma vez ele luta para sobreviver.

Muito a celebrar tem Bruno de Lima. Depois de se viciar em drogas, ele está “limpo” há dez meses e preparava-se para celebrar pela primeira vez o aniversário do filho Artur, que completou seis anos no dia 14 (Sexta-Feira Santa). Ele era um comerciante próspero, mas perdeu tudo para as drogas. Contou que preferiu abandonar a família, que sofria com a co-dependência, e agora a está a reconquistando com o apoio do serviço de reconciliação familiar.

“Quem está nas ruas incomoda o outro, mas também há aqueles com má-índole”, afirmou dizendo que a vulnerabilidade social gera escolhas dificeis. “Nas ruas o ambiente é hostil e falta tudo. Principalmente água”. Para ele, a rotina, a moradia assistida e o trabalho no Laboratório do Incor são fundamentais para o seu recomeço. “Eu agradeço a todos que me acolheram.”

A história de vida de Valtercir Ifran é uma sucessão de equívocos. Abandonado pela família ainda na primeira infância, aos dez ele foi adotado e fugiu de casa aos 17. “Eu não me habituava aos ambientes, situações me desagradaram e a convivência não se aprofundava… Foram muitos atritos, pois não me adaptava aos lugares. Perdi amigos, família e até nos albergues há restrições”, disse afirmando: a gente é o que a gente gerou. Usar um uniforme e crachá, hoje, é uma nova chance de viver e superar “as situações desagradáveis que marcaram a sua trajetória de vida”.

Lembrar da primeira noite que dormiu na rua levou o carioca de 48 anos, Almir Pacífico, às lágrimas. “Estava chovendo e fazia frio. Dormi na frente de uma igreja. Foi horrível!”. O dilema do ex porteiro começou depois que o casamento de 21 anos (25 de convivência em comum) chegou ao fim. Os quatro filhos, que moram no Rio de Janeiro, não sabem a dura realidade que o pai entrenta e aguardam o momento ideal para visitá-lo em São Paulo. “Eu converso com eles pelo Facebook e apenas dou boas notícias para eles”, disse aguardando o dia que conseguirá alugar uma casa para recebê-los com a dignidade resgatada.

A família de Emerson Oliveira, 46 anos, não aceitou a sua orientação sexual. Depois de romper um relacionamento de anos, quando o parceiro sucumbiu às drogas,  ele não se permitiu morar na rua. Garantindo que nunca se drogou, procurou um abrigo, recorreu à reciclagem e chegou a dar aulas de italiano para um médico neurocirurgião. Acreditando que trabalhar na limpeza é uma oportunidade para ele e os colegas, além de uma bagagem para a empresa Centro, filosofa: a vida ensina. “A condição que nos une e a experiência compartilhada nos ajudará a vencer os preconceitos.”

A alegria do happy hour, quem diria, foi à tristeza de Beatriz Macedo Custódio. Aos 31 anos, ele vivia há três em situação de rua, depois que deixou o conforto da casa do pai, em Guararema. A rotina, então, era estudar para se encontrar com os amigos após as aulas, não importando o curso. Tornou-se alcoólatra e passou a trabalhar para custear o vício.  “Morei em maloca, trabalhei com reciclagem e me enturmei na rua”, conta com o sorriso nos lábios, sua característica marcante.

Delicadeza em pessoa, Pamela dos Santos Silva é uma menina que nasceu em corpo masculino. Diferente, ela não foi aceita na pacata São José do Rio Preto de vinte anos atrás. Ainda adolescente abandonou a escola, conheceu as drogas e a vida. “Era o tempo da peste gay, como a Aids ficou conhecida”, justifica.  Hoje, feliz com a oportunidade dada pela Centro, ela afirma que se sente bem. Acredita, entretanto, que o Estado ainda tem muito a fazer para romper a barreira existente contra os homossexuais, travestis e transexuais nas sociedade e mundo laboral.

“Eu tive que aprender a lavar banheiro, limpar o que estava sujo e deixar o encardido brilhando”, disse Pablo Vilhalva. “Eu fui jogado às traças, não tive família e tive que me virar sozinho”, contou. Há um mês, graças ao trabalho na limpeza, alugou a primeira casa, no Jardim Angela.

De poucas palavras, o alagonano Genival Bezerra Xavier carrega consigo sua tragédia pessoal. Consequentemente, há seis anos foi viver na rua, remoendo dores difíceis de serem cicatrizadas. Se não é capaz de esquecer, com a rotina diária de trabalho está pronto para recomeçar…

Escolhas erradas levaram Luiz dos Santos Mocca, 48 anos, a viver nas ruas. Ele ficou pouco ao relento, 20 dias apenas, e depois procurou um albergue. Motorista de taxi, ele conhece bem a cidade, a realidade local e agora busca se reintegrar na sociedade.O projeto, como da maioria dos colegas, é conquistar uma casa através do trabalho formal.

O desemprego foi o limite para Ivanilto Jacinto da Silva. Ele tolerou seis meses sem trabalho até decidir migrar com a família para São Paulo em busca de oportunidades na construção civil. Deixou casa montada em Maceió porque viu, na internet, que teria “serviço sobrando de pedreiro por aqui”. Não encontrando, teve que recorrer a um abrigo, onde abraçou como uma boia a oportunidade na limpeza.  O final teria sido feliz se não fosse o fato de a mulher e os dois filhos terem voltado, abandonando-o sem avisar… Sem entender, no dia seguinte ele alugou um quarto e segue a vida esperando o momento de reconsquistar novamente o seu lar.

Fabrício Santos Medeiros, 35, vive em situação de rua desde 2009. Ele deixou a mãe na Bahia aos 13 anos, conhecer às drogas e não resisitu ao abandono da esposa. Viveu de bicos, pois não tinha “nada a sonhar”. Agora tem.

crack foi a sina do gaúcho Rafael Czermainski, que chegou a ter uma empresa própria, tentou se recuperar di vício durante duas internações e após morar  na rua chegou a conquistar o seu canto. Como se tratava de uma ocupação, foi despejado novamente.  “Quem não paga imposto não é tratado como cidadão”, justificou. Agora ele paga.

Reconhecimento pela trabalho

José Mário, Jamile, Manuel, Marco Antonio, Bruno, Valtercir, Almir, Emerson, Beatriz, Pamela, Pablo, Genival, Luiz, Ivanilto, Fabrício e Rafael são sobreviventes. Venceram a fome e a intolerância. A fraqueza os tornou fortes e agora buscam a dignidade através do trabalho. É claro que têm uma longa história a percorrer rumo a um futuro, mas agora não estão mais sozinhos na luta pela vida.

Ao longo de 11 anos de carreira na Centro, a encarregada Viviane Angelina dos Santos salienta que as características positivas dos colaboradores. “Eles aceitam melhor as ordens e têm fácil convivência.”

Apesar de ainda recentes, as primeiras estatísticas são positivas. Lovane Bergonsi conta que apesar de algumas baixas registradas quando do pagamento do primeiro salário, os números mostram uma aderência maior ao trabalho, nesse primeiro trimestre.  “Registramos uma média de 65% de efetivação contra os índices usuais de 35%”, adiantou, ressaltando que o futuro do projeto de inserção pelo trabalho dependerá  dos resultados desse primeiro grupo de funcionários.

Com 25 anos de carreira, testemunha que a Centro foi ousada ao inserir esse novo perfil de trabalhadores na limpeza hospitalar, que explica ser mais criteriosa, implica em maior responsabilidade e cobrança pela excelência. Justamente por isso o desafio é maior para o futuro do projeto, afinal, se o programa der certo nas instituições de saúde terá mais chances de sucesso nos demais segmentos.

Curiosamente, ao contrário do que ocorre usualmente no segmento da limpeza a maioria absoluta, 90% da equipe é formada pelo sexo masculino. Por outro lado, não há restrições de idade os requisitos são mais maleáveis. Garante que não é exigido escolaridade nem experiência para aderir ao Projeto Emprego Novo, apenas vontade de trabalhar.

Ela ressalta, contudo, que os perfis são avaliados pelo departamento de Recursos Humanos da Centro e conta com o apoio das lideranças nas bases de trabalho e o suporte da Ong Rede Cidadã. “Reestruturar vidas é o desafio. Para isso, vale qualquer esforço, entendendo o valor da história de cada um e o seu projeto pessoal”, finalizou.